Archive for ‘Pascoal António Jacinto’

16 Junho, 2012

António Jacinto Pascoal – ÁLVARO CID: UM HERÓI DISCRETO DE MONFORTE

(Reproduzido de ESC, 1ª versão)

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Álvaro José da Trindade Cid (1903-1976) nasceu em Monforte e tem um trajecto existencial de inegável importância, dado o seu carácter intrinsecamente contestatário, num tempo em que ser anti-fascista era salvo-conduto para a anulação pessoal. Como as pessoas comuns, que não adquirem estatuto visível no domínio do grande público, Álvaro Cid atravessa a história do século XX, em Portugal, sem que se dê por ele, mas fica a sua indelével marca na vida sócio-política da vila de Monforte. Como sempre, para além dos grandes mitos e dos «heróis» consensuais, a história é feita de pessoas iguais ao comum dos mortais, decisivas, contudo, para o processo dessa mesma história.

Álvaro Cid continua a ocupar uma posição obscura na história do antifascismo português, até pelos poucos registos que nos são dados conhecer. Não sabemos se foi membro do Partido Comunista Português, embora tenha sido perseguido pela PIDE/DGS por esse motivo; sabemos, contudo, que esteve sempre longe de ser conotado com o situacionismo e que pugnou pelos direitos dos trabalhadores, que, reconhecidos, o levaram em ombros até à sua morada final, numa urna coberta pela bandeira do PCP.

Álvaro Cid nasceu num dia 3 de Dezembro de 1903, filho do comerciante José Maria Cid, um antifascista de raiz republicana, e de Rosa Emília da Trindade Cid. O pai fora Presidente da Câmara Municipal de Monforte e, em sua casa, chegou a promover actividade política, destacando-se o comício de apoio ao Dr. Arlindo Vicente, feito no quintal, com os oradores instalados na varanda. O carácter antifascista do pai, a sua própria admissão na C.M. de Monforte como funcionário e a sua posterior expulsão, por motivos políticos, moldaram o seu temperamento e instigaram-lhe a vontade de pugnar pelo estado democrático, o que lhe valeu ter tido adversários políticos e perseguições várias.

Casado e com quatro filhos, Álvaro trabalhava no Assumar, na «Casa Vaquinhas», pertença de Francisco José Vaquinhas, homem de grande dignidade e respeitador dos direitos dos trabalhadores, reconhecendo no seu empregado uma figura de elevado valor. Na altura, Álvaro integrava as fileiras das instalações fabris, onde se produzia gasogénio e «brikets». No Assumar, um Professor Primário (JVTT), representante da União Nacional, ter-se-á apercebido das tendências políticas de Álvaro e chegou a agredi-lo, ameaçando-o de o «dar como comunista». No dia seguinte, foi preso. Estávamos nos finais dos anos 30, por alturas do Natal e isso repercutiu-se negativamente na casa de Álvaro. Ao Professor Primário valeu-lhe passar a ser alcunhado publicamente de «o canalha». Já depois deste incidente, «o canalha» voltou a perseguir várias vezes Álvaro, com difamações e perjúrios, quase sempre por alturas de eleições ou do 1º de Maio. Álvaro era já um agitador político, que reunia em casa o Coronel Velez Caroço, o Dr. Manuel Portilheiro e o Dr. Florindo Madeira, todos conotados com a oposição. Aliás, o Dr. Florindo Madeira estudara em Coimbra com Álvaro Cid, sendo correligionários. A este propósito, diga-se que Álvaro Cid, por razões pouco claras, não terminou o antigo 7º ano (actual 11º), tendo estudado em Coimbra e Lisboa, onde contactou com grupos da oposição salazarista.

Entre os anos 30 e 40, fez propaganda política nos concelhos de Arronches, Monforte e Campo Maior, de mota, que comprou para o efeito, altura em que distribuía clandestinamente o jornal Avante!. Chegou, inclusive a ser um amigo íntimo de Álvaro Cunhal, que recebeu mais do que uma vez, em sua casa, em Monforte. Mais tarde tornou-se viajante, ao serviço da Casa João Camillo Alves, em negócios de distribuição de vinhos.

Das várias vezes que foi preso, recorda-se um caso em que, desprevenido, já dentro do jeep da GNR, metia à boca o retrato de Lenine e o comia, para não sofrer represálias maiores; chegado a Alter do Chão, simulou uma dor intestinal e despachou o ícone revolucionário, que lhe poderia valer uma entrada na «frigideira» do Tarrafal. Quando foi detido pela última vez, em 1951, residia já em Évora e era funcionário da Casa Camillo Alves: os dois elementos da PIDE, Silva e Candeias, deram-lhe voz de prisão, ao que Álvaro retorquiu que na sua consciência nada lhe pesava, querendo saber o motivo da detenção. Tendo o Sr. Candeias dito que o motivo era político, Álvaro não hesitou e respondeu «Estou ao vosso inteiro dispor. Se me permitirem, vou-me despedir de minha mulher e de meus filhos». Ouviram-se-lhe ainda estas palavras: «Coragem, Maria! Coragem, rapazes! O pai voltará!». Seguiu para o Aljube, sendo quase todos os dias interrogado na António Maria Cardoso (com sevícias brutais: colocado sobre bancos de cozinha, encandeado por lâmpadas de 500 velas, espancado e com os dedos esmagados, ao som das gargalhadas dos algozes). Depois foi transferido para Caxias, onde só a mulher o podia visitar. Foi numa das celas que fez o célebre dominó: um dominó com dezenas de peças, construído com miolo de pão e que faz hoje parte do espólio museológico da C.M. de Monforte. Durante os 14 meses de cativeiro, o viajante substituto entregava à mulher de Cid o respectivo ordenado, para não comprometer a casa que lhe dava emprego.

Sabe-se que em 1971, por documento pertença da C.M. de Monforte, a PIDE/ DGS enviara um ofício confidencial ao então Presidente de Câmara, Sr. José Maria Soeiro Romão. Ali se apresentavam os dados de Álvaro e lia-se uma breve nota: «É elemento que professa ideias comunistas. Em, 29 Abr. 1971». Cerca de 3 anos depois, a revolução permite-lhe imaginar que o seu passado não foi em vão e que, em sacrifício do seu bem-estar e do dos seus familiares, a sua dignidade mantinha-se, pois nunca se vergara ao regime salazarista.
Em Maio de 1974 torna-se Presidente da Comissão Administrativa e foi no exercício das suas funções que veio a falecer, no Hospital de S. José, em 1976, com 73 anos.

Durante grande parte da sua vida, escreveu artigos para o «A República», «O Século», e para periódicos mais modestos como o «Notícias da Amadora» ou «A Rabeca» de Portalegre. Sabe-se que nunca se tomou de rancores e que tratou os seus inimigos sempre como adversários políticos. Escolheu, porém, o lado da barricada mais difícil. Com isso, não teve os privilégios que poderia ter alcançado, mas alcançou aquele que é o mais caro: a dignidade da consciência.
Chegado de Lisboa, para ser sepultado, os trabalhadores de Monforte retiraram-no do carro onde seguia, carregando-o em ombros. Álvaro Cid não quis cerimónias religiosas. Mas não prescindiu da bandeira comunista sobre a sua urna. Sofreu por delito de opinião e os seus crimes foram apenas as suas crenças. Esteve preso porque pensava doutra maneira, numa sociedade atrasada e periférica que nunca prezou inovações, caracterizada por uma cultura de repressão e exclusão. Álvaro afrontou essa repressão. Desta coragem é feita a massa dos homens desassombrados. Poucos, mas imprescindíveis. Monforte deve reconhecer-lhe o lugar que merece, porque é exemplo para as novas gerações. A escola é o lugar onde o seu nome deve começar a ser estudado e descoberto. Para que não falte nenhuma peça do dominó.

Espanta-nos que a História esteja aqui mesmo a um passo.

Fontes:

Câmara Municipal de Monforte;
Coronel Matos Serra;
Daniel Balbino;
Francisco Cid (filho de Álvaro Cid)

*

António Jacinto Pascoal (Professor da Escola Básica de Monforte)

COMENTÁRIOS:

Agradeço a afixação. Para muitas pessoas de Monforte está a ser uma novidade, mas também um reconhecimento de uma personalidade ímpar. Sabemos também da tentativa rápida de silenciar este nome, através de difamações, que nos fazem recordar os tempos em que se imputava a alguns comunistas o modo da «matança da Páscoa». Calúnias de quem sempre esteve ao lado do poder e nunca recuperou de se ver afastado (por momentos) dele. Curiosamente, noutro contexto, acabo de ler que no Cadaval se recorda o 17 de Julho de 1975, quando o Centro de Trabalho do PCP foi incendiado e destruído. Resta saber onde estava esse papão do «comunismo»…
A neta de Cid deverá trazer um bom contributo, mesmo que emotivo, como de resto já o fez noutro local, para minha surpresa.
Congratulo-me com a «abertura» de JPP e a sua incansável disponibilidade para plasmar a História.

Afixado por António Jacinto Pascoal em agosto 1, 2005 06:37 PM

Curioso o cognome aqui tão condignamente atribuído: «herói discreto». Álvaro Cid foi precisamente isso para mim ao longo de toda a minha vida. Sem o conhecer, esteve sempre comigo.
Desde criança que oiço histórias da sua bravura invulgar, episódios de grande audácia e perseverança que lhe trouxeram, invariavelmente, pesadas dores. Dores físicas e da alma, sendo estas últimas, acredito, as mais difíceis de suportar.
Mais que um antifascista, mais que um membro da oposição política, Álvaro Cid, meu avô, foi um lutador pelos direitos humanos, recusou conivência com a injustiça, sendo incapaz de se manter indiferente à arbitrariedade cruel do regime político então vigente. Poderia ter-se subjugado à força ameaçadora do governo e seus tentáculos, mas não o fez. Tinha consciência das consequências nefastas, para si e sua família, mas, ainda assim, imperou o seu sentido de dever, ou mesmo necessidade,de participar na demanda dos direitos do povo português.
Por tudo isto é grande o meu orgulho em o ter como avô, Álvaro Cid.
Nasci em 1976, dias antes da sua morte. Não me pôde conhecer, mas eu conheci-o, o que só posso agradecer ao meu pai, que ao longo destes anos fez questão de pintar um retrato vivo de seu pai, permitindo-me obter os seus ensinamentos , apesar do desencontro físico.
E,agora, agradeço-lhe a si, caro António Jacinto Pascoal, por esta lembrança, que resultou num belíssimo texto biográfico e literário, o qual concedeu ainda um momento de emoção e comoção aos familiares. Veio, sem dúvida, contribuir para a história de um país, em particular de Monforte, ao avivar a memória de um homem raro como Álvaro Cid.
Em meu nome e de meu pai, Manuel Cid, bem haja!

Afixado por sandra cid em agosto 3, 2005 07:34 PM

Desconhecia este alentejano de fibra!
Foram heróis discretos como ÁLVARO CID que fizeram a diferença, ao esprimir os seus ideais democráticos sem medo dos fascínoras fascistas.

Parabéns pelo artigo.

Afixado por Sertorius em agosto 24, 2005 06:14 PM

Tive o prazer de conhecer, ainda que por pouco tempo, esse adimrável homem que foi Álvaro Cid.
Foi ele que me “incitou” a integrar a Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Santo Aleixo, sendo ele o Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Monforte.
Era um homem de fortes convicções, um lutador, um amigo.
Sem abdicar dos seus ideais, a todos sabia houvir, para todos tinha uma palavra de esperança…
Muito com ele aprendi, visto que na altura sómente tinha 20 anos.
Sempre hei-de recordar aquele homem, um tanto franzino, um farto bigode e sempre com a sua “bengalinha”.
Obrigado António Pascol por esta homenagem a um HOMEM que Monforte tem esquecido.

Afixado por sabino dias em outubro 3, 2005 02:17 PM

Se alguem tiver mais informação sobre a “casa vaquinhas” ou Francisco José Vaquinhas, por favor contacte-me por email : ricardo.vaquinhas@gmail.com .

Afixado por Ricardo Vaquinhas em janeiro 7, 2006 04:00 PM